terça-feira, 23 de outubro de 2007

Manifesto de Alice



Venha comigo, minha menina, e vamos desbravar o desconhecido de mãos dadas. Pés no chão, menina! Vamos, Alice, divagar confabulações no peito dos que reverberam sonhos. Em mim habitam meus amores, a família fraterna dos bons e maus amigos e milhares de flores! O projeto de minha vida é viver o dia. O tempo que faço questão de não escravizar nas horas das sociedades, das cidades ou das meras saciedades. Energia e vontade que não me faltam para investir na qualidade dos minutos a pautarem a expansão e a contração do mundo em meus pulmões. Medida sem fórmula, essa vida que nos mostra quem somos de verdade e sagazmente instiga a nossa busca pela misteriosa razão de estarmos aqui. Em cada espaço de um passo aqui e outro acolá, o profundo silêncio necessário para o entendimento. Tropeços, decerto, pois eu e você somos ainda crianças na arte de viver. Eu, nos primeiros raios de vida ainda e mal acredito que vinte e oito anos já se passaram. Sou tão semente que sinto cada tecido de meu efêmero organismo vivo morrer a cada segundo diluindo-se em sucessivas transformações de pensamentos e formas. Porém, o centro propulsor dessa força vibrante que me impele a continuar o caminho sem perder o Norte é bem menos abstrato e absurdo do que as figuras que crio quando escrevo. Como isso funciona, então? Como esses movimentos simbióticos de dissociação e integração podem ocorrer tão intrinsecamente ao mesmo tempo, oras me pondo fora do mundo e oras no centro dele, e ainda assim conviverem em harmonia? Medida sem fórmula, Alice. Faço é seguir a contemplar minúcias de um ponto grandioso de observação e distinguir sentidos de um sutil, metafórico-simbólico, quase irrisório referencial. Circulares parâmetros visitados e revisitados que quedam-se a cada instante em recortes de diferentes ângulos do sentir. E inevitavelmente caio nas teias da construção de um novo, nem sempre novo, modelo de entendimento das coisas que me vão acontecendo ao longo dos anos. Jogada no mundo, assim lançada como flecha de fogo consumada em órbita orientada por um princípio doce de discernimento e sensibilidade, vivo revivendo você em mim, querida Alice, espelho de meus olhos. Princípio esse tão subjetivo quanto universal que se manifesta através da ordem do caos da existência das coisas. Vou descobrindo maravilhosamente quem sou, como você quando adentra o buraco do coelho das horas. Tomada pelo desvelo valente da curiosidade do saber e da receosa inexperiência diante do país encantado das múltiplas possibilidades, choro também, querida, o choro de quem navega sem saber o cais que lhe aguarda e gargalho um rio de alegria ao tomar a poção mágica dos braços de meus amigos em meus abraços, os que me virão restituir as lágrimas da saudade. Como em você, em todos nós, o espirito da criança renasce oceânico e profundo imerso em um infinito processo de conhecimento. Desloco-me por vezes de sujeito a sujeitado aos meus próprios valores e horrores e, por entre a confrontação de olhares e julgamentos oscilantes tão cheios de segurança, ponho-me em perspectiva vacilante de um ser-outro. Sou, sim, a menina que eu mesma crio e investigo sem saber explicar à maneira de muitos homens, mas que traz como testemunha da realidade, o sonho. Quer pareça aleatório aos olhos alheios, ou não, eu tenho um rumo e ele condiz exatamente com o tamanho da boa-ventura de minha sorte. Despisto o absurdo de que sonhar seja absurdo e caio no concreto. Vivo o meu sonho como um projeto e dele faço a morada da poesia do dia-a-dia. Irremediável norte, sonho esse que vem e me ensina a aprender. Aprendi com você, Alice, que somos o que inventamos e, portanto, podemos ser o que quisermos. E eu pergunto: Quem virá nos podar as asas uma vez que a última instância de nossas limitações é imposta por nossa própria condição humana? Não ouso a ignorância de julgar, tampouco a presunção de saber, contudo, arrisco a armadilha de um pensamento a disparar: Nós que somos feitos de matéria do mundo, o barro, como podemos ser qualquer coisa se não nos embrenhamos mundo adentro e não permitimos que a vida transcenda a aparência da realidade e vire sonho? Adentro eu o universo, sem me corromper ao molde de outras esculturas. De mãos dadas com Alice, eu recrio o percurso da poeira que depois da estrada vazia e da chuva tardia, vira argila. Aprendi com a menina, semente cultivada e florida da criança, que não há serventia a capturar a energia da vida quando o coração cativado pela alegria se faz maior em sonho e mais humano em realidade.