terça-feira, 24 de junho de 2008

A rua


Tambem eu

sou feita de rua

Equivalencia

consubstancial

do barro, da lama

por vezes poeira

Sou eu

dissipada

na ventania

que me leva


Valetas de resistencias

Avisto pontes aereas

e mil lacunas

em minha historia

Por onde perambulam

pedestres e moradores

da memoria


Chao batido de mim

Pisam-me 'a superficie

os tolos

Ajudando-me a sedimentar

tesouros subterraneos


Imperfeicoes e desniveis

em que resvalo,

mas nao caio,

num acerto

escorregadio

de meu passo


Lencol de emocoes

das chuvas escoadas

'as profundas camadas

de tantas alegrias

e tantas magoas


Eh a rua surrada

de que sou feita

por onde me vou

e sou carregada

Num passeio de descompassos,

a estrada efemera

e a escavacao eterna.

Mente na Lua vivente


Disfarce conveniente seu. Descorre o vendedor ambulante sobre o eterno retorno dos ciclos de criacao e destruicao dos mundos. O rei Indra e eu o acompanhamos atentos. Despertamos juntos de nossa ignorancia e vaidade. O longo periodo de dessacralizacao do real sentido da vida se rompe. Sei do bombardeio sonoro e o ouco na buzina de tantos veiculos. Sei da difamacao da sensibilidade humana em diversos graus de deturpacao da realidade. Estranhamento do espelho translucido a refletir a identidade original nossa. A introjecao dos sistemas sociais em minha corrente sanguinea. Seus modelos de comportamento, seus codigos moralizantes, suas hipocrisias. A artilharia pesada dos meios de massificacao das ideias que ao me abaterem sobremaneira, surpreendentemente, revigoram o impeto de desferir a flecha-chave de minha libertacao. Quedo consciente e voluntariamente ao poco obscuro de meu arcabouco mitico a fim de traze-lo 'a luz . Voz da mae geradora de toda a criacao, prostro-me ao ouvir o seu sussurro penetrante sob a forma de silencio que tudo petrifica para tudo remodelar. Unidos pela morte de tantas vidas, pela acao da estarrecedora intuicao cosmica, reacende em mim a revelacao da imortalidade. Assim, vejo lado a lado projetados em minha mente os milhares de fragmentos de minha condicao existencial. A obediencia historica, que sorrateiramente rouba e extirpa a genuina dimensao da vida, eh finalmente subtraida 'a retencao do ar em meus pulmoes. Nome, identidade, personalidade e a mascara da geografia corporal com todos os seus artificios sao estilhacados diante do espelho de meu ser integral. O reverso da fantasia que so a imaginacao reaviva. O avesso da loucura que faz temer um homem sao. O contraponto desafiador do chamado para uma definitiva reconciliacao com o ser unico sobrevivente. Nada mais posso ser. Desgarrada das amarras do tempo, escorro para alem do circulo atmosferico onde e somente onde me reencontro dentro do mundo. Olhos precipitados da ignorancia desvairada de nossos tempos, julgam-me alucinada. Mente na lua vivente. Convite para que me cale, ainda que eu nao possa parar. Motricidade cosmologica minha, cuja carne nao passa da maquiagem palida de meus ossos.

O que precede o Sol


Armada de fe
ate o po dos ossos
renuncio a majestade
dos reinados
e abraco os destrocos



Ergue-se em anunciacao
dos ciclos cosmicos,
a poeira glorificada
dos deuses decaidos


Restos mortais
de tantos Indras imortais
Rebaixados 'a licao eterna
das acoes periodicas
do Universo


Compaixao pelo pobre,
compadeco-me eu
sem padecer
de minha propria miseria


Humana existencia
que o negro tempo
nao alcanca

Idade transcendental
Independente

Envaidece-me, assim,
o orgulho de saber ser...
ninguem


E renascida da lama,
qual o lotus que vinga,
sigo fortalecida
em meio ao caos.
31/05/2008 - Varanasi

domingo, 22 de junho de 2008


"O pensamento simbolico nao eh uma area exclusiva da crianca, do poeta ou do desequilibrado: ela eh consubstancial ao ser humano, precede a linguagem e a razao discursiva"
(Mircea Eliade, Imagens e Simbolos, p.8)

Em delirio febril, o corpo sonolento esparramado na cama, avistei refletido em sonho o estado claustrofobico de minha condicao enferma. Realidade em sonho a exprimir a pulsao mais significativa de sentidos submersos. Prisao voluntaria onde confinei as minhas energias e expectativas a fim de trabalha-las em silencio. Longe do mundo, no fim de tudo que me eh conhecido. Esvoaco desfeita no po do anonimato ao quebranto da passada do vento a soprar-me os pes. Nao eh de pasmar-se que o barro se rompa e se perca 'a acao seca do tempo. Ainda assim, eh viva demais a memoria umida do ventre materno a modelar-me criatura da terra. Hoje, nao ha chuva que me escorra, lagrima que me lave. Enrijeci os anos de minha formacao sob a forma de mulher e o coracao mantive cativo no berco oceanico de toda a criacao humana. Embora o po da jornada me venha enrugar as raizes do rosto, nao me abate a pedra impenetravel do peito. Ainda que eu precise repousar, ele pulsa. Ainda que nao se faca cancao de minhas maos, ressoa a melodia da alma. Eu, presa no cubiculo de mim mesma, com meus pensamentos ordinarios e mediocres so encontro saida na janela dos olhos de onde avisto uma arvore soberana, superior. A mae de todas as maes, o centro de todos os circulos, a fortaleza primordial de todas as forcas e a beleza do proprio Belo. Mito sonhado meu, vem atraves de uma visao onirica restituir-me a sanidade de estar salva e segura sob minha propria pele. Camada fragil de que faco o casulo de mim e, ao mesmo tempo, 'a rebelia desse sistema invencivel de protecao, resta uma janela. A abertura unica por onde o mundo me invade. O trincar da barragem que nao da conta de conter a tormenta do mar. Eu apenas olho e observo aterrorizada o poder da grande mae. Arvore novamente. Nao vejo sua copa ou suas raizes, mas o olho de seu caule robusto e espesso. O seu olho me diz do sofrimento da humanidade e eu covarde no cubiculo de minha pele tenho o impeto de fugir. Tolice de um sonho penetrante do qual se quer despertar e, simultaneamente, permanecer hipnotizado. A dor dela era a minha dor. Amargura compartilhada nossa. Compaixao que eh o senso de ancestralidade de sem mais nem menos tornar-se um. De minhas veias, as raizes; de meu sangue, a seiva; dos pensamentos, as folhas; dos sentidos, os frutos; dos sonhos, uma guirlanda de flores. Tormento vivido, o chacoalhar daquela arvore sagrada num prenuncio de morte. Como podia? Justo ela, ser abatida por qualquer que fosse a adversidade do tempo ou a crueldade humana. Aos meus olhos, invencivel, era inquestionavel que fosse eterna. No entanto, o som dissipado de suas fibras rolicas se rompendo confirmou a queda tragica da mae terra. Ao de cair de seu corpo-monstro, afugentei-me encolhida temendo que ela me abatesse dentro do cubiculo onde me restava sobreviver. Um ultimo gesto de sua magnitude, ela ensinou-me a grandeza da confianca. Eh certo que tombara dos pes 'a cabeca e que me poderia ter esmagado, mas restamos intactos, eu e o meu casulo. Morta, rente ao chao de onde sua trajetoria de vida recomecaria mais uma vez.