terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

O homem de bem


Criterioso que é, o homem de bem escolhe cuidadosamente o dardo agudo que irá desferir o alvo. A complexa rede de leituras livres lhe provê uma teia de significados possíveis, oras a capturar a presa, oras a emaranhá-lo na própria tecitura de seus fios. Textura áspera de um tecido de palavras ríspidas disfarçadas à delicadeza e polidez de seus gestos habituais. Veste-se com o texto lírico, meticulosamente poético-artístico, e camufla-se como quem se defende ou ataca. Segue com o olhar covarde de quem rasteja trincheiras de significados ameaçadores à paz de sua guerra consigo mesmo. Segue até onde não pode ver-se refletido desnudado da verbal camuflagem. Translúcido, despido. Utiliza-se o homem de bem de seu fiel instrumento de guerrilha, o estilete da língua, para com total destreza modelar à conveniência de suas intenções de vitória o sentido tal e qual das coisas do mundo. Espelho de sua real ignorância, não vê ele a reflexão perplexa e difusa contida na multiplicidade de ângulos que evadem à sua limitada percepção. Contraditoriamente, excita-o a atividade de pensamento que lhe condena ao sistema prostrado de declarar batalhas sem fim contra si mesmo. Vício intransigente seu o de cumprir a obrigação das conveniências. Ilusão de conforto, mais cedo ou mais tarde, a revolução das águas vem lhe estourar o casulo onde se resguardara. Afinal, a quê bel-prazer ele escraviza a expressão do que sente e compreende à restrita exploração de sentenças prontas? Sem gozo de vida, mesmo que fale belo, é beleza roubada do floreio alheio. Segue ele, assim, entrincheirado por entre corredores sem saída de subterfúgios educados a lhe sabotarem a sinceridade do reconhecimento de si mesmo. Falsa modéstia como alimento de seu ego, logo, os labirintos das trincheiras se erguem num castelo imponente de pretensa humildade. Reconhecer-se torna-se a grande muralha que mais lhe delata a fraqueza de não saber ser grande do que a fortaleza de pequeno. Cumprimentos tantos, os de seus modos requintados de ciência e sofisticada desenvoltura nos tratos, que vêm tornar seu castelo mais impenetrável ainda à ação de descobrir-se. Sedução de narciso, esse homem além de bem é belo. Um forte a mais a bloquear a consciência do pobre! Refugiado em seu próprio universo de significação, ele decodifica o mundo. O homem de bem funda um verdadeiro reino de opiniões e argumentos cheios de certeza e verdade. Detentor sagaz da habilidade de postar-se em um centro louvável de conhecimento de si mesmo e do mundo, ele se torna senhor da subjetiva arte de conferir sentidos e valores a tudo o que lhe rodeia. Não demora muito e o homem de bem vira rei. Indecentemente condescendente às dimensões de verdade que ele mesmo carrega como coroa a lhe pesar sobre a testa. O peso, o volume, a densidade, o comprimento, a altura, a forma, a profundidade, a cor, a temperatura; a hora lírica, a demora dramática, a letargia lúdica, a poesia onírica... em suas milhares investigações sobre as coisas, em seus lúcidos e lunáticos estados provocados pelas mais mirabolantes descobertas, o homem de bem morre segundo após segundo sem ter a pompa verbal que lhe veste a morrer consigo.

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